Haicai 17
Ao florescer em tom rosa
pálido, quase branco, o ipê
brinca que está nevando.
Silêncio,
cinza lá fora,
chuva amena,
mesa farta,
falta o pai – que é dia deles –,
falta mais gente – que a família
se apequenou com as perdas
do caminho.
É muito
ou pouco,
dependendo
da perspectiva,
prefiro a plena:
o silêncio,
a serenidade,
a falta da família
ao redor da mesa
compõem apenas
uma circunstância.
O viver é feito disso,
circunstâncias,
aproveitá-las,
usufruí-las
e fim,
só isso,
tudo isso.
O míope, quando
tira os óculos,
se vê – literalmente –
imerso em um
quadro impressionista.
Cascatas,
música clássica,
chuva rápida,
estalo de pipoca,
disso tudo,
um pouco de cada coisa,
veio a sonoridade
cristalina
das risadas.
Há dias em que dá uma
vergonha de mim,
de ser quem sou,
de ser como sou.
O que fazer?
Fugir,
enfiar-me na toca,
deixar de ser?
A melhor alternativa
é viver – como diria
Clarice Lispector –
apesar de…
Contrariar as contrariedades
Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes, é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora da minha própria vida.
Clarice Lispector, em ‘Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres’
Quando perguntaram
ao guerreiro
ao inquisidor
ao terrorista
ao ditador
ao homem, enfim,
por que era tão cruel
com o outro homem,
ele respondeu simplesmente,
sem hipocrisias religiosas
ou apelos idealistas:
– Porque eu posso.
Na luta da vida,
o poder é uma arma
muito perigosa.
No fim, só a
morte é certa.
Mas, no remoinho
do viver, mesmo
as certezas são incertas
e fluem, em sua particular
harmonia, pelos mistérios
da impermanência.
Ser aquático,
mergulhar
nas profundezas
do oceano,
escapar do etéreo
para o aconchego
do cristalino
manto.
Estender-se leve
ao balanço das algas
e, como as tartarugas,
sombrear
as transparências,
pintalgando de prata
os cardumes
em efervescência.
Tomar impulso
de golfinho,
defendendo-se
como o marlim
e sua espada,
assustando curiosos
feito moreia
entocada.
no redemoinho
das ondas,
temendo as manchas
aladas e seus bicos
pontiagudos
a furar
a flor das águas.
Desmanchar-se em
miríades de cores
e formas submarinas,
fluir
pelas correntezas,
acompanhando as marés
da lua eternamente
enamoradas.
Esquecer,
em abandono submerso,
a dimensão seca
da vida.